OS DONOS DA RUA
Rogério
Rodrigues
As luzes amarelas e embaçadas das lâmpadas penduradas nos
postes toscos de negra braúna há pouco foram acesas, mas a escuridão parece rir
de tamanha ineficácia. Aos poucos, depois da janta, as pessoas ocupam os bancos
de madeira ou alguma pedra se fingindo de banco, à frente das casas e vão
conversar sobre tudo, desde as histórias das vidas dos santos até os temas mais
profanos como as histórias das vidas dos outros. A maioria chega no mesmo
horário que é no final de A hora do
Brasil, que ninguém ouve, apenas usa como referência da hora. Outros, na
verdade outras, esperam o final da radionovela, que começa às 20 horas, logo
depois de A hora do Brasil.
Contudo, a animação da rua à noite é mérito da meninada. As
meninas cantam na roda como se fosse numa apresentação, tamanho o denodo e a
aplicação, enquanto os meninos exercitam-se em estripulias e disputas físicas.
Não raro, a noite termina ao redor de uma fogueira improvisada, com os casos de
assombração. Depois desses colóquios, todos se dirigem às suas casas com uma fé
à flor da pele, um medo que exige um vai
com Deus ou Mãe do céu que te cubra com seu manto.
Entre a hora de O Guarani e o vai com Deus
há um tempo mágico, uma vivência tão paradisíaca, que todos acreditam na tal
felicidade. É como uma ópera italiana ou uma orquestra em que todos os
personagens são essenciais e cada um tem o seu lugar preciso. As meninas e
alguns meninos vão mais cedo para a cama e nem se aquecem na fogueira, mas
ainda sonham com a noite. A alegria se perpetua quando vêm à mente uma certeza:
amanhã tem mais. E esse jogo que intercala cada noite e as lembranças da noite
vai fazendo da vida uma experiência animadora e, sobretudo, confortável.
Ninguém imagina como a vida vai tratar de sair dessa zona de conforto num futuro
próximo. Enquanto isso, vamos continuar de mãos dadas com a felicidade.
Hoje tem menino para la´ da conta, ideal
para fazer um pique-salva; uns 15
moleques para cada lado. Definidos os dois lados, um de cada lado vai disputar
o par ou ímpar para decidir quem foge
e quem pega. A confusão já começa aí, cada lado fica argumentando que um dos
disputantes demorou para baixar a mão. Mas resolvida essa questão, um dos
bandos vai correr e procurar se esconder enquanto o outro vai contar até 20 ou
30 ou... e depois procurar os fugitivos. À medida que forem encontrados, os
moleques vão fazendo uma corrente com uma extremidade de mão em um poste
(chamado de pique) e a outra livre
para receberem o toque de algum companheiro e serem salvos. Quase sempre, o
primeiro par ou ímpar definia a
noite, pois era dificílimo inverter os papéis dos dois grupos; para isso, era necessário capturar todos do outro grupo e
não deixar salvarem ninguém durante a captura. A primeira providência era a
mais difícil, uma vez que os fugitivos muitas vezes se escondiam nos lugares
mais inesperados, alguns desistiam da brincadeira por algo melhor e nem
avisavam que tinham desistido. Contudo, ainda assim era emocionante a
brincadeira. Com o tempo, os moleques aprenderam a marcar uma hora para o grupo
de fuga voltar e dar boa continuidade à brincadeira.
Hoje é dia de Casa limpa, que é uma brincadeira boa para um número de 20 a 24
moleques. O par ou ímpar decide duas
coisas: o início da montagem dos dois grupos e quem começa ocupando as casas.
Quem vence o par ou ímpar escolhe se
quer uma coisa ou outra. Casas limpas são 8 círculos de uns 80 cm de diâmetro,
dispostos sobre uma circunferência de uns 8 a 10 m de diâmetro, entre dois dos
círculos, há um retângulo de 80 cm por 1 m. O grupo que ocupa as casas
distribui seus elementos pelos círculos, um em cada círculo; os que sobram
ficam em fila no retângulo. O outro grupo se espalha em torno das casas, sendo
que um deles fica de frente para o retângulo na parte interna da grande circunferência.
Esse último deve lançar uma bola para o primeiro da fila e este deve socar a
bola para o mais longe possível, de modo que a outra equipe perca o maior tempo
possível no regate da bola; enquanto isso, quem socou a bola sai correndo de
círculo em círculo, juntamente com a fila de ocupantes iniciais, no sentido
anti-horário, até que a bola seja resgatada e quando parar o movimento de casa
em casa, cada uma delas deve estar ocupada por exatamente um elemento; o
retângulo também deve estar ocupado. Os dois grupos trocam de posição em três
situações: Se o grupo de fora conseguir agarrar a bola no alto, depois de
socada; se o grupo de fora conseguir acertar (queimar) alguém, com a bola, fora das casas, ao transitar entre
elas ou se alguém do grupo de fora lançar a bola dentro de uma casa vazia.
Toda brincadeira masculina é uma batalha,
sempre uma disputa entre dos moleques ou entre dois grupos de moleques; essa é
a única coisa que torna a brincadeira atraente; é a histórica natureza humana
envolvendo-se sempre em embates em qualquer circunstância, até mesmo em
situações lúdicas. Algumas delas deixa claro que, na verdade, o que
objetivamente é a essência de todas as brincadeiras de rua é a violência, que
nesse caso, é envolvida por um enredo: a diretriz da brincadeira. Duas das
brincadeiras de rua mais famosas e mais violentas são o garrafão e Mãe da rua.
No garrafão,
desenha-se com linha de água um garrafão de uns 3m por 7m no chão. Divide-se a
turma em dois grupos: um grupo fica dentro do garrafão e outro fica fora. O
grupo de fora deve retirar um a um os moleques de dentro, entrando e saindo
apenas pelo gargalo do garrafão. Esta é que é a suposta dificuldade da
brincadeira; quem invade o garrafão pode ser violentamente atacado com chutes e
socos pelos participantes de dentro. Contudo, tem sempre alguém que se submete
à tempestade de socos para tirar alguém de dentro na base da força ou um bom
número de invasores ocupam parte dos participantes de dentro, enquanto outros
escolhem apenas um dos internos e se concentram em tirá-lo do garrafão. Um
detalhe muito importante: somente os ocupantes do garrafão podem dar socos e
pontapés e somente dentro do garrafão. Os moleques de fora só podem agarrar alguém
para tirar do garrafão, mas não podem bater nele.
Na Mãe
da rua, muito parecido com o garrafão,
um dos grupos fica na calçada e o outro fica no meio, da rua. Cada participante
de um grupo segura pela mão um participante do outro grupo. A brincadeira consiste
em puxar para o seu campo os moleques do grupo adversário; quando alguém da
calçada pisa na rua, ele pode ser socado pelo grupo dalí e, do mesmo modo, se
alguém da rua sobe na calçada, ele pode ser socado pelo grupo dali. O grupo
vencedor é o que conseguir passar todo o outro grupo para sua área. Em qualquer
caso, o indivíduo é considerado rendido, quando é jogado de costas ao chão e
alguém consolida a rendição com três tapinhas nas suas costas.
Apesar de serem brincadeiras que abrem a
guarda para a violência, há sempre um tácito acordo para não se incorrer em
exageros; na maior parte dos casos, quando um moleque é subjugado por outro ou
outros, ele apenas sofre cócegas provocadas pelos seus “algozes”.
Há especialmente duas boas brincadeiras
com bolas: o campeonato e a queimada.
A primeira usa bola de futebol e a segunda usa bola de meia. A bola de meia é
feita com panos e uma meia velha: enche-se a meia com panos, dando o formato de
uma bola e costura-se no final.
No campeonato,
há uma disputa de chutes a gol entre duas duplas de jogadores. Inicialmente uma
dupla fica entre as traves de um gol oficial (mais ou menos 2,10 m de altura e
7,20 de largura), como goleiros, seis vezes a bola é chutada a gol; se algum
dos goleiros rebater a bola, qualquer um pode tomar a bola e jogá-la novamente
ao gol. Se isso acontecer, um dos goleiros vira jogador de linha e corre para
disputar a bola e lança-la, apenas com os pés, para o parceiro que ficou no
gol. Depois das seis bolas, registra-se o número de bolas convertidas em gol e
as duplas trocam de lugar. A dupla que fizer o maior número de gols vence o
jogo. Nesta brincadeira, mais de 20 duplas se revezam, enquanto uma dupla for
vencendo ela vai ficando para disputar com as outras. Como a brincadeira
acontece também na rua, o gol é improvisado com duas pedras e a altura do gol é
imaginária: se a bola passar entre as pedras a uma altura próxima da altura dos
goleiros, é gol.
A queimada
é um jogo de bolas com uma das mãos. Dois grupos de, no máximo, 5 moleques cada
um ficam dispostos a uns 10 m um do outro, de frente um para o outro.
Inicialmente, alguém de um grupo lança a bola para o outro grupo, com o
objetivo de acertar alguém (queimar);
pode-se receber a bola e segurá-la, mas se a bola bater na mão e não for
segurada, o moleque está queimado. Então ele sai da fileira principal e forma
outra fileira na frente de seus adversários, Quando a bola transitar entre as
fileiras principais e queimar alguém que já foi queimado, ele sai da
brincadeira. Vence a equipe que conseguir eliminar a outra.
Um fato raro é menina brincar com menino.
Contudo, todas as brincadeiras de rua podem ser brincadas pelos dois gêneros.
Então, em muitas situações, particularmente quando a faixa de idade é início da
adolescência ou pré-adolescência, o interesse dos gêneros em conviver
naturalmente aparece e, então, algumas brincadeiras mais femininas são
compartilhadas.
Uma das brincadeiras preferidas das
meninas é o passa anel, em que os
participantes dispõem-se em círculo e um deles, tendo um anel escondido entre
as palmas das duas mãos, passa por cada um do círculo e insere as duas mãos espalmadas
com o anel, passando ou não o anel para determinado participante de forma
bastante discreta. Depois que passar por todos, alguém tenta adivinhar com quem
ficou o anel e, se conseguir, tomará o lugar de quem passou o anel. Como na
maioria das vezes, não há um anel disponível, qualquer outro objeto é usado
(uma pedrinha, um galhinho, ...). É nessa oportunidades que começa um flerte,
um namoro, pois o menino ou a menina tem a chance de tocar as mãos do outro,
sem exposição; passar o anel pode ser como perguntar “Você topa namorar comigo?”
Há também o corre cotia, em que todos se agacham de olhos cobertos, em círculo,
e alguém, com uma varinha na mão circula essa roda cantando
Corre cotia, de noite ou de dia,
passa na porta da ave-maria....
Aí,
então, de forma bem discreta, a varinha é deixada atrás de um dos participantes
na roda. E o moleque que deixa a varinha continua andando e cantando mais uma
volta. Se a pessoa escolhida, durante a volta não descobrir que a varinha está
atrás de si, o participante que a deixou, bate com a varinha no distraído até
ele completar a volta e retornar ao seu lugar. Se o participante descobrir a
varinha antes da tal volta de quem a deixou, ele persegue o cantor durante uma
volta até que ele ocupe o seu lugar original. Nesse caso, o perseguidor passa a
ser o novo cantor e tudo recomeça.
Uma outra versão da corre cotia é a brincadeira de nome chicotinho queimado, A diferença é que a varinha é escondida fora
da roda e todos vão procura-la. Se alguém a encontra, pode chicotear quem a
escondeu durante uma volta completa na roda.
De todas as brincadeiras femininas, a
mais espetacular, sem dúvida, é a Roda
com suas cantigas e coreografias. Há dois tipos básicos de composição de roda.
O mais tradicional é um círculo de participantes de mãos dadas. Enquanto o
círculo roda ao som de alguma cantiga, os participantes vão dançando,
rebolando, individualmente ou aos pares, de acordo com a cantiga. Uma das boas
é:
Você gosta de mim, oh menina,
eu também de você, oh menina,
vou pedir ao seu pai, oh menina
para casar com você, oh menina!
Se ele disser que sim, oh menina,
Tratarei dos papeis, oh menina,
Se ele disser que não, oh menina,
Morrerei de paixão, oh menina!
Palma! Palma! Palma! Oh menina,
pé! pé! pé! oh menina,
roda! Roda! Roda! Oh menina,
abraça quem quiser! Oh menina!
Outra
disposição, coloca o grupo em semicirculo ou lado a lado e, um por um, os pares
vão cantando, rebolando e caminhando na direção do semicírculo, como na
cantiga:
Pai Francisco entrou na roda,
Tocando seu violão, daranrão dão
dão!
E vem de lá Seu delegado,
Com Pai Francisco, foi para a
prisão!
Ah
como é que ele vem todo requebrado,
Parece um boneco desengonçado!
Ah como é que ele vem todo
requebrado,
Parece um boneco desengonçado!
Quem,
na infância brincou de roda, certamente
vivenciou experiências afetivas de grande valor para a sua formação como pessoa
e desenvolveu habilidades indispensáveis tanto no campo afetivo como na
cognição. E as cantigas ficam na mente como lembranças muito gratificantes:
A
carrocinha pegou seis cachorros de uma vez!
A carrocinha pegou seis cachorros de uma vez! Terereré, que gente é essa, terereré, que
gente má!
Três
solteiras a passear, passear, passear!
Três
solteiras a passear, bem cedo, de manhã!
Seus
amigos vão falar, vão falar, vão falar:
Três
solteiras a passear, bem cedo, de manhã!
A brincadeira mais ousada nesses tempos
é a Salada
de frutas, também conhecida como Pera,
uva ou maçã? Nessa brincadeira, mais comum entre adolescentes, um dos
participantes, com os olhos vendados, é perguntado sobre sua preferência por um
dos outros participantes : “é esse?... “é esse? ... em seu momento supostamente
conveniente, ele responde “é!” Então, o interlocutor pergunta “pera, uva ou
maçã? Se a resposta for pera, uva ou maçã, o vendado tira a venda e,
respectivamente, dá um abraço, um beijo no rosto ou um beijo selinho na boca.
Os mais ousados incluem a salada de
frutas, que é um beijo na boca mais quente do que um selinho.
As brincadeiras de rua, que são inúmeras;
cada região tem as suas, são, em maior parte, procedentes da Europa,
principalmente de Portugal e Espanha, mas muitas também são da própria região
onde são executadas. Todas elas têm como alma alguma coisa cultural ou do inconsciente
coletivo. Normalmente contemplam a agressividade ou a sexualidade e a relação
homem/mulher:
O Cravo brigou com a Rosa,
debaixo de uma sacada,
o Cravo saiu ferido
e a Rosa despedaçada!
e
os jogos de sedução:
Rebola, bola, você diz que dá. Que dá,
você diz que dá na bola,
na bola, você não dá!
São
os impulsos amarrados e amordaçados pelo cristianismo no ocidente ao longo de
milênios; moram no inconsciente e só saem de lá vestidos de coisa simbólica,
uma vez que não se dá conta de assumí-los como são em cada indivíduo. Mas são
como água descendo a montanha: nada os segura, nem mesmo a visão do inferno; de
algum modo se manifestam. As brincadeiras de rua são, na verdade, expressões da
natural condição humana, são como os valores humanos contemplados pela
mitologia clássica de tal modo, que Jung os assumiu na sua análise
psiquiátrica, como protótipos humanos. A brincadeira, na verdade, é de uma
seriedade que não aparece, mas é uma maneira subliminar de se apossar daquilo
que é próprio do humanismo.
Belo Horizonte, 10 de abril de 2017.