quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

                                 ONDE ESTÁ O COMUNISMO?
                                                          Rogério Rodrigues
                 Há pelo menos 100 anos que o Marxismo começou a ser esfolado pelas crenças filhas do Capitalismo, assim como há pelo menos 2000 anos que o Cristianismo começou a ser distorcido, por conveniência, pelos “Cristãos”. Ambos os ideários têm crenças comuns, que contemplam o humanismo de modo axiomático, mas os modos de vida esculpidos à luz dessas crenças não são pertinentes, visto que elas foram relativizadas convenientemente.
              Cristo não quis criar nenhuma igreja, ele queria algo bem mais simples e que deveria ser fácil: Fazer com que os homens se amassem. Marx também falou da sociedade e dos meios de produção que conhecia, ressaltando as grandes desigualdades sociais, que existem até hoje. Ambos desejavam uma sociedade mais justa e defendiam o compartilhamento dos bens; ambos condenavam as religiões que ignoravam e mascaravam as injustiças, enquanto um pontuava que as religiões de sua época eram o ópio do povo, o outro convocava: Deixa todos os teus bens e segue-me.
                O Comunismo, que deveria ser uma fiel pragmatização das ideias de Karl Max, não conseguiu se instalar satisfatoriamente na Terra. Na União Soviética, promoveu a morte de mais de um milhão de pessoas, encheu as prisões no gelo da Sibéria e criou uma rede conspiratória, que trabalhava incansavelmente para um regime totalitário. Portanto, o Comunismo de fato não existiu no planeta. Então, quem pode saber como é? Quem pode dizer que o Comunismo é do Diabo, é contra a Família, é contra Deus? Na verdade, ele tem todos os elementos para fazê-lo perfeito, mas, devido à condução humana, não é.
              No Brasil e em toda a América do Sul, o Capitalismo construiu uma imagem apavorante do Comunismo para fortalecer as ditaduras na segunda metade do século 20. Essa imagem instituiu o medo de tudo o que ameaçava a segurança física e a moralidade. Em toda nação, principalmente na zona rural, as famílias faziam compridas rezas contra o demônio do Comunismo, que comia crianças. Atribuía-se a esse demônio toda a imoralidade, todo vício, tudo de ruim. Esse equívoco é também semântico, uma vez que a tentação mundana, o hedonismo, é promovido pelo Consumismo, que é o filho primogênito do Capitalismo. O maior inimigo do Socialismo puro é o Consumismo. A Revolução Chinesa começou a sucumbir pelas mãos do Consumismo, tentação de acesso aos bens produzidos pelo mundo tecnológico como Coca-Cola, videogames e inúmeros serviços. Durante a Ditadura Militar no Brasil, a imagem do Comunismo foi sendo piorada ao ponto que inviabilizava a livre interação dos grupos, já que muita gente tinha “hábitos comunistas” como fumar maconha e gostar de Rock. O grupo de extremistas chamado TFP (Tradição, Família e Propriedade) saía com suas bandeiras vermelhas a convocar o povo para resistir ao comunismo. Depois, descobriu-se que o TFP era paramilitar. Na zona rural e nas cidades do interior. Os padres, que tinham uma ascendência muito grande sobre seu rebanho, exortavam à reza contra a invasão do Brasil pelo comunismo e os políticos convocavam os cidadãos para se prepararem e formarem uma milícia armada para o caso do comunismo chegar. Mas o que era, na cabeça desses cidadãos, o comunismo? Era um exército, era uma ideia que vai passando de pessoa em pessoa? Ninguém nem mesmo sabia do que se tratava.
              Infelizmente, o povo brasileiro não recebeu estímulo suficiente e nem mesmo uma educação imparcial que o motivasse a conhecer a História do país. Então, ainda hoje, o discurso anticomunista é o mesmo de sempre: Se não presta é comunista e se é comunista, não presta. Que obscuro!
                    Belo Horizonte, 23 de dezembro de 2018.                                

                               




sábado, 28 de abril de 2018

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segunda-feira, 10 de abril de 2017


                         OS DONOS DA RUA
                                        Rogério Rodrigues

       As luzes amarelas e embaçadas das lâmpadas penduradas nos postes toscos de negra braúna há pouco foram acesas, mas a escuridão parece rir de tamanha ineficácia. Aos poucos, depois da janta, as pessoas ocupam os bancos de madeira ou alguma pedra se fingindo de banco, à frente das casas e vão conversar sobre tudo, desde as histórias das vidas dos santos até os temas mais profanos como as histórias das vidas dos outros. A maioria chega no mesmo horário que é no final de A hora do Brasil, que ninguém ouve, apenas usa como referência da hora. Outros, na verdade outras, esperam o final da radionovela, que começa às 20 horas, logo depois de A hora do Brasil.
       Contudo, a animação da rua à noite é mérito da meninada. As meninas cantam na roda como se fosse numa apresentação, tamanho o denodo e a aplicação, enquanto os meninos exercitam-se em estripulias e disputas físicas. Não raro, a noite termina ao redor de uma fogueira improvisada, com os casos de assombração. Depois desses colóquios, todos se dirigem às suas casas com uma fé à flor da pele, um medo que exige um vai com Deus ou  Mãe do céu que te cubra com seu manto.
       Entre a hora de O Guarani e o vai com Deus há um tempo mágico, uma vivência tão paradisíaca, que todos acreditam na tal felicidade. É como uma ópera italiana ou uma orquestra em que todos os personagens são essenciais e cada um tem o seu lugar preciso. As meninas e alguns meninos vão mais cedo para a cama e nem se aquecem na fogueira, mas ainda sonham com a noite. A alegria se perpetua quando vêm à mente uma certeza: amanhã tem mais. E esse jogo que intercala cada noite e as lembranças da noite vai fazendo da vida uma experiência animadora e, sobretudo, confortável. Ninguém imagina como a vida vai tratar de sair dessa zona de conforto num futuro próximo. Enquanto isso, vamos continuar de mãos dadas com a felicidade.
       Hoje tem menino para la´ da conta, ideal para fazer um pique-salva; uns 15 moleques para cada lado. Definidos os dois lados, um de cada lado vai disputar o par ou ímpar para decidir quem foge e quem pega. A confusão já começa aí, cada lado fica argumentando que um dos disputantes demorou para baixar a mão. Mas resolvida essa questão, um dos bandos vai correr e procurar se esconder enquanto o outro vai contar até 20 ou 30 ou... e depois procurar os fugitivos. À medida que forem encontrados, os moleques vão fazendo uma corrente com uma extremidade de mão em um poste (chamado de pique) e a outra livre para receberem o toque de algum companheiro e serem salvos. Quase sempre, o primeiro par ou ímpar definia a noite, pois era dificílimo inverter os papéis dos dois grupos; para isso, era  necessário capturar todos do outro grupo e não deixar salvarem ninguém durante a captura. A primeira providência era a mais difícil, uma vez que os fugitivos muitas vezes se escondiam nos lugares mais inesperados, alguns desistiam da brincadeira por algo melhor e nem avisavam que tinham desistido. Contudo, ainda assim era emocionante a brincadeira. Com o tempo, os moleques aprenderam a marcar uma hora para o grupo de fuga voltar e dar boa continuidade à brincadeira.
       Hoje é dia de Casa limpa, que é uma brincadeira boa para um número de 20 a 24 moleques. O par ou ímpar decide duas coisas: o início da montagem dos dois grupos e quem começa ocupando as casas. Quem vence o par ou ímpar escolhe se quer uma coisa ou outra. Casas limpas são 8 círculos de uns 80 cm de diâmetro, dispostos sobre uma circunferência de uns 8 a 10 m de diâmetro, entre dois dos círculos, há um retângulo de 80 cm por 1 m. O grupo que ocupa as casas distribui seus elementos pelos círculos, um em cada círculo; os que sobram ficam em fila no retângulo. O outro grupo se espalha em torno das casas, sendo que um deles fica de frente para o retângulo na parte interna da grande circunferência. Esse último deve lançar uma bola para o primeiro da fila e este deve socar a bola para o mais longe possível, de modo que a outra equipe perca o maior tempo possível no regate da bola; enquanto isso, quem socou a bola sai correndo de círculo em círculo, juntamente com a fila de ocupantes iniciais, no sentido anti-horário, até que a bola seja resgatada e quando parar o movimento de casa em casa, cada uma delas deve estar ocupada por exatamente um elemento; o retângulo também deve estar ocupado. Os dois grupos trocam de posição em três situações: Se o grupo de fora conseguir agarrar a bola no alto, depois de socada; se o grupo de fora conseguir acertar (queimar) alguém, com a bola, fora das casas, ao transitar entre elas ou se alguém do grupo de fora lançar a bola dentro de uma casa vazia.
       Toda brincadeira masculina é uma batalha, sempre uma disputa entre dos moleques ou entre dois grupos de moleques; essa é a única coisa que torna a brincadeira atraente; é a histórica natureza humana envolvendo-se sempre em embates em qualquer circunstância, até mesmo em situações lúdicas. Algumas delas deixa claro que, na verdade, o que objetivamente é a essência de todas as brincadeiras de rua é a violência, que nesse caso, é envolvida por um enredo: a diretriz da brincadeira. Duas das brincadeiras de rua mais famosas e mais violentas são o garrafão e Mãe da rua.
       No garrafão, desenha-se com linha de água um garrafão de uns 3m por 7m no chão. Divide-se a turma em dois grupos: um grupo fica dentro do garrafão e outro fica fora. O grupo de fora deve retirar um a um os moleques de dentro, entrando e saindo apenas pelo gargalo do garrafão. Esta é que é a suposta dificuldade da brincadeira; quem invade o garrafão pode ser violentamente atacado com chutes e socos pelos participantes de dentro. Contudo, tem sempre alguém que se submete à tempestade de socos para tirar alguém de dentro na base da força ou um bom número de invasores ocupam parte dos participantes de dentro, enquanto outros escolhem apenas um dos internos e se concentram em tirá-lo do garrafão. Um detalhe muito importante: somente os ocupantes do garrafão podem dar socos e pontapés e somente dentro do garrafão. Os moleques de fora só podem agarrar alguém para tirar do garrafão, mas não podem bater nele.
       Na Mãe da rua, muito parecido com o garrafão, um dos grupos fica na calçada e o outro fica no meio, da rua. Cada participante de um grupo segura pela mão um participante do outro grupo. A brincadeira consiste em puxar para o seu campo os moleques do grupo adversário; quando alguém da calçada pisa na rua, ele pode ser socado pelo grupo dalí e, do mesmo modo, se alguém da rua sobe na calçada, ele pode ser socado pelo grupo dali. O grupo vencedor é o que conseguir passar todo o outro grupo para sua área. Em qualquer caso, o indivíduo é considerado rendido, quando é jogado de costas ao chão e alguém consolida a rendição com três tapinhas nas  suas costas.
       Apesar de serem brincadeiras que abrem a guarda para a violência, há sempre um tácito acordo para não se incorrer em exageros; na maior parte dos casos, quando um moleque é subjugado por outro ou outros, ele apenas sofre cócegas provocadas pelos seus “algozes”.
       Há especialmente duas boas brincadeiras com bolas: o campeonato  e a queimada. A primeira usa bola de futebol e a segunda usa bola de meia. A bola de meia é feita com panos e uma meia velha: enche-se a meia com panos, dando o formato de uma bola e costura-se no final.
       No campeonato, há uma disputa de chutes a gol entre duas duplas de jogadores. Inicialmente uma dupla fica entre as traves de um gol oficial (mais ou menos 2,10 m de altura e 7,20 de largura), como goleiros, seis vezes a bola é chutada a gol; se algum dos goleiros rebater a bola, qualquer um pode tomar a bola e jogá-la novamente ao gol. Se isso acontecer, um dos goleiros vira jogador de linha e corre para disputar a bola e lança-la, apenas com os pés, para o parceiro que ficou no gol. Depois das seis bolas, registra-se o número de bolas convertidas em gol e as duplas trocam de lugar. A dupla que fizer o maior número de gols vence o jogo. Nesta brincadeira, mais de 20 duplas se revezam, enquanto uma dupla for vencendo ela vai ficando para disputar com as outras. Como a brincadeira acontece também na rua, o gol é improvisado com duas pedras e a altura do gol é imaginária: se a bola passar entre as pedras a uma altura próxima da altura dos goleiros, é gol.
       A queimada é um jogo de bolas com uma das mãos. Dois grupos de, no máximo, 5 moleques cada um ficam dispostos a uns 10 m um do outro, de frente um para o outro. Inicialmente, alguém de um grupo lança a bola para o outro grupo, com o objetivo de acertar alguém (queimar); pode-se receber a bola e segurá-la, mas se a bola bater na mão e não for segurada, o moleque está queimado. Então ele sai da fileira principal e forma outra fileira na frente de seus adversários, Quando a bola transitar entre as fileiras principais e queimar alguém que já foi queimado, ele sai da brincadeira. Vence a equipe que conseguir eliminar a outra.
       Um fato raro é menina brincar com menino. Contudo, todas as brincadeiras de rua podem ser brincadas pelos dois gêneros. Então, em muitas situações, particularmente quando a faixa de idade é início da adolescência ou pré-adolescência, o interesse dos gêneros em conviver naturalmente aparece e, então, algumas brincadeiras mais femininas são compartilhadas.
       Uma das brincadeiras preferidas das meninas é o passa anel, em que os participantes dispõem-se em círculo e um deles, tendo um anel escondido entre as palmas das duas mãos, passa por cada um do círculo e insere as duas mãos espalmadas com o anel, passando ou não o anel para determinado participante de forma bastante discreta. Depois que passar por todos, alguém tenta adivinhar com quem ficou o anel e, se conseguir, tomará o lugar de quem passou o anel. Como na maioria das vezes, não há um anel disponível, qualquer outro objeto é usado (uma pedrinha, um galhinho, ...). É nessa oportunidades que começa um flerte, um namoro, pois o menino ou a menina tem a chance de tocar as mãos do outro, sem exposição; passar o anel pode ser como perguntar “Você topa namorar comigo?”
       Há também o corre cotia, em que todos se agacham de olhos cobertos, em círculo, e alguém, com uma varinha na mão circula essa roda cantando
               Corre cotia, de noite ou de dia,
               passa na porta da ave-maria....

Aí, então, de forma bem discreta, a varinha é deixada atrás de um dos participantes na roda. E o moleque que deixa a varinha continua andando e cantando mais uma volta. Se a pessoa escolhida, durante a volta não descobrir que a varinha está atrás de si, o participante que a deixou, bate com a varinha no distraído até ele completar a volta e retornar ao seu lugar. Se o participante descobrir a varinha antes da tal volta de quem a deixou, ele persegue o cantor durante uma volta até que ele ocupe o seu lugar original. Nesse caso, o perseguidor passa a ser o novo cantor e tudo recomeça.
       Uma outra versão da corre cotia é a brincadeira de nome chicotinho queimado, A diferença é que a varinha é escondida fora da roda e todos vão procura-la. Se alguém a encontra, pode chicotear quem a escondeu durante uma volta completa na roda.
       De todas as brincadeiras femininas, a mais espetacular, sem dúvida, é a Roda com suas cantigas e coreografias. Há dois tipos básicos de composição de roda. O mais tradicional é um círculo de participantes de mãos dadas. Enquanto o círculo roda ao som de alguma cantiga, os participantes vão dançando, rebolando, individualmente ou aos pares, de acordo com a cantiga. Uma das boas é:

            Você gosta de mim, oh menina,
             eu também de você, oh menina,
            vou pedir ao seu pai, oh menina
            para casar com você, oh menina!

            Se ele disser que sim, oh menina,
            Tratarei dos papeis, oh menina,
            Se ele disser que não, oh menina,
            Morrerei de paixão, oh menina!

            Palma! Palma! Palma! Oh menina,
            pé! pé! pé! oh menina,
            roda! Roda! Roda! Oh menina,
            abraça quem quiser! Oh menina!

Outra disposição, coloca o grupo em semicirculo ou lado a lado e, um por um, os pares vão cantando, rebolando e caminhando na direção do semicírculo, como na cantiga:

              Pai Francisco entrou na roda,
             Tocando seu violão, daranrão dão dão!
             E vem de lá Seu delegado,
             Com Pai Francisco, foi para a prisão!

             Ah como é que ele vem todo requebrado,
            Parece um boneco desengonçado!
           Ah como é que ele vem todo requebrado,
           Parece um boneco desengonçado!

Quem, na infância brincou de roda, certamente vivenciou experiências afetivas de grande valor para a sua formação como pessoa e desenvolveu habilidades indispensáveis tanto no campo afetivo como na cognição. E as cantigas ficam na mente como lembranças muito gratificantes:

  A carrocinha pegou seis cachorros de uma vez!
 A carrocinha pegou seis cachorros de uma vez!   Terereré, que gente é essa, terereré, que gente má!


Três solteiras a passear, passear, passear!
Três solteiras a passear, bem cedo, de manhã!
Seus amigos vão falar, vão falar, vão falar:
Três solteiras a passear, bem cedo, de manhã!

       A brincadeira mais ousada nesses tempos é  a Salada de frutas, também conhecida como Pera, uva ou maçã? Nessa brincadeira, mais comum entre adolescentes, um dos participantes, com os olhos vendados, é perguntado sobre sua preferência por um dos outros participantes : “é esse?... “é esse? ... em seu momento supostamente conveniente, ele responde “é!” Então, o interlocutor pergunta “pera, uva ou maçã? Se a resposta for pera, uva ou maçã, o vendado tira a venda e, respectivamente, dá um abraço, um beijo no rosto ou um beijo selinho na boca. Os mais ousados incluem a salada de frutas, que é um beijo na boca mais quente do que um selinho.
       As brincadeiras de rua, que são inúmeras; cada região tem as suas, são, em maior parte, procedentes da Europa, principalmente de Portugal e Espanha, mas muitas também são da própria região onde são executadas. Todas elas têm como alma alguma coisa cultural ou do inconsciente coletivo. Normalmente contemplam a agressividade ou a sexualidade e a relação homem/mulher:

              O Cravo brigou com a Rosa,
              debaixo de uma sacada,
             o Cravo saiu ferido
             e a Rosa despedaçada!

e os jogos de sedução:

              Rebola, bola, você diz que dá. Que dá,
              você diz que dá na bola,
              na bola, você não dá!

São os impulsos amarrados e amordaçados pelo cristianismo no ocidente ao longo de milênios; moram no inconsciente e só saem de lá vestidos de coisa simbólica, uma vez que não se dá conta de assumí-los como são em cada indivíduo. Mas são como água descendo a montanha: nada os segura, nem mesmo a visão do inferno; de algum modo se manifestam. As brincadeiras de rua são, na verdade, expressões da natural condição humana, são como os valores humanos contemplados pela mitologia clássica de tal modo, que Jung os assumiu na sua análise psiquiátrica, como protótipos humanos. A brincadeira, na verdade, é de uma seriedade que não aparece, mas é uma maneira subliminar de se apossar daquilo que é próprio do humanismo.

          Belo Horizonte, 10 de abril de 2017.
                 



quinta-feira, 30 de março de 2017

Menino empoleirado

                       MENINO EMPOLEIRADO
                      (Ao primo Paulinho, que partiu antes do raiar do dia)

                                                                      Rogério Rodrigues


Me lembro de um menino peixe,
pequenino, magrinho na piscina,
nadando veloz e sem desleixe,
brilho na córnea de cada menina.

Me lembro que o menino dirigia,
seu pé mal tocava a embreagem,
empoleirado na boléia,vinha e ia,
seus olhinhos eram de coragem.

O menino, pela vida, apaixonado,
queria um pouco mais que tudo,
decerto, sonhava muito acordado,
sobre isto, nem falava, ficava mudo.

Meus olhos pousavam sobre o guri,
sua aura angelical era o fascínio,
quando pisquei, ele sumiu daqui,
senti sua perda, em alto declínio.

Onde estás anjo pequeno levado?
no esconde esconde, não vale o céu,
se não apareces, fico na rua parado,
a tua história não são letras no papel.


sábado, 11 de março de 2017

                     




                                                       FADO

                                                        Rogério Rodrigues

Nas tardes preguiçosas de uma infância,
os rumores do ofício em harmonia:
o tinir do ferro sobre uma bigorna
ao bater modelador de um marrete.

E dali a duas milhas, no mesmo silêncio,
beatas se revezam, guardando o santíssimo.
A única voz é do trabalho na pedreira,
marretes quebram pedras que choram.

Os rumores insistem ao longo de uma vida,
acabam virando canções, nunca acabam!
Então, as canções de pedras, ferros e marretes
viram as notas ou palavras do pranto e do sorriso.

Assim se deu na península em oito séculos:
O muezim, que do minarete chamava,
Imprimiu nas almas dominadas o seu canto;

e o canto enviesado virou falsete do fado.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

SENTIDO

                                                     
                                                     SENTIDO

                                                                  Rogério Rodrigues

Por que buscar no verso o sentido,
uma lógica, padrão ou pertinência,
como se fosse de extrema urgência
que fosse, como tudo, compreendido.

Se a palavra é fruto de polpa e caroço,
adoça a língua ou quebra os dentes,
sua compreensão pode fugir às mentes,
quando pouco, é carne de pescoço.

Se a alma plantar um verso qualquer,
o que disser pode estar bem blindado,
no seu  modo singular de ser falado,
mas terá o cheiro de quem o compuser.

Entretanto, há um senso, uma guia,
que para muitos homens é inato,
de intensa luz, nem sempre abstrato,

tem alma de mulher e se chama poesia.